sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Em nome do sangue, das cinzas e das ossadas...

Por primeiro, não tratarei o tema, O SENTIDO DA BELEZA, tal o proposto ao debate.

Permitam-me pois enquanto me explico: é simples, não consegui fazê-lo. Contudo, ensaiei o inverso - urgiu e rugiu dentro de mim, que eu me pronunciasse sobre A BELEZA DO SENTIDO.

O sentido aqui referido à palavra “sentido”, possui clara intenção do sentido histórico, aquele sentir humanamente que nos faz partilhar daquelas terríveis encruzilhadas do nosso tempo, nas quais à nossa experiência estética, a vida nos mostra, não o Belo, mas a Fealdade, não o Sublime, mas o Trágico.

Não falarei da Estética da contemplação do Belo, seja aos moldes platônicos da aliança entre estética e erótica, seja conforme as atribuições aristotélicas da conformação à simetria, ou ainda, aos moldes da tradição cristã, a beleza caritativa.

Conforme as necessidades dos homens, os arrebatamentos da sensibilidade humana- aquilo que afecta, tange, fisga, por primeiro e mais intensamente, faz-se através do olhar.

A visibilidade cotidiana que atravessa o conjunto das nossas existências mostra-nos sobejamente a concretude do Inferno, que nada mais é do que o conjunto das nossas vidas, vividas miseravelmente.

Vidas sem graça, a lembrar Schopenhauer, vidas desgraçadas, as nossas, ocupadas com as misérias materiais, em sua primeira banda e, na outra, com as misérias espirituais. (29)

De Ferreira Gullar, capto nele, mais uma crueza real, “ o Inferno começa pelo olho, mas em breve é tudo.” (116)
De imediato, como já devem ter percebido, não posso discorrer, agora, sobre o inventário estético , mediante o qual poderia cravar, aqui e acolá, alguns critérios à beleza. Por enquanto, não.

Ao invés, do atestado empírico da predominância da ausência do Belo, convém ainda suportarmos, que somos capazes de viver com a predominância da ausência do Bem e a da ausência da Verdade. Capazes de viver, mas o estado de inautenticidade do nosso viver humano, aniquila ou impede ao máximo, que vivamos humanamente.

Ainda podemos afirmar com Marx, mais de cento e cinqüenta anos após, que vivemos na pré-história da humanidade, que não atingimos sequer a estatura própria do homem.

Somos ainda verdadeiramente humanos?... Ou, homens éramos?... Ou, nunca chegamos a sê-lo, verdadeiramente?... Estamos a perder não apenas aquilo que nossos ancestrais, a duras e cotidianas penas, conquistaram, “o contínuo recuo das barreiras naturais”, a encetar, a pouco e pouco, o nosso laborioso espírito, as transcendências, o humaníssimo mundo dos símbolos.

Os animais têm suas tocas, seus covis, seus ninhos, seus lugares de abrigo. Encontram seus alimentos, suas águas, higienizam-se, unem-se em bandos e se reproduzem. Assim como nascem, morrem: sem escândalo biológico, naturalmente.

E os índices assustadores, quanto a nós, os bichos humanizados?

A maioria da população mundial, não tem abrigo, nem alimento, água, ou luz. Encontramos já nos Manuscritos Econômico-Filosóficos: “A habitação cheia de luz que Prometeu, em Ésquilo, caracteriza como um dos maiores dons pelo qual transformou o selvagem em homem, deixa de existir para o trabalhador. A luz, o ar e a mais elementar limpeza animal cessam para o homem de figurar como necessidades. A imundície, a corrupção e a putrefação dos homens, os esgotos da civilização (o termo deve entender-se à letra), tornam-se o seu elemento vital. (...) Não bastou que o homem tivesse perdido as necessidades humanas; também as necessidades animais desapareceram (...). p. 209.

Lamento, mais uma vez! Mas não cabe, pelo menos a mim, discursar sobre o sentido da beleza, pois estaria a supor que ainda ela há e, mais, que guardaria qualquer sentido.

Instância radicada que é na ordem do ser humano , a Beleza, possui ou deveria possuir aquele distintivo nosso, a capacidade de contemplar, de admirar, a única via que nos possibilita transcender, ver além das solicitudes imediatas do nosso tempo de reificações, o que significa ver além do próprio individualismo e da massificação.

Converto-me, à guisa de poder-me pronunciar verdadeiramente, à Beleza do Sentido, sem o qual , animais decaídos permaneceremos, de humanos à desumanidade.

Remetidos estamos todos à dificultosa tarefa das decisões, das escolhas. O ato decisório, cabível sempre, em última instância ao indivíduo, não significa que este haja sempre de ser entendido de maneira ególatra.

Antes de sermos quem somos, há um longo itinerário que nos antecede sobre o qual, não podemos decidir. Não escolhemos as condições herdadas do passado, disse-nos uma vez Marx. Com também nos diria Sartre- não se trata do que fizeram conosco, mas sim do que faremos disto que fizeram conosco.

A forma assumida, no seio desse legado, das grandes tarefas que se impõem a nós, os contemporâneos, é a de podermos decidir sobre a possibilidade a que sobrevivamos, todos os homens, e não somente alguns, da forma muito digna e sublime, além dessas tragédias que nos entretecem e entristecem, a cada dia.

Sirvo-me de alguns testemunhos vivos da tragédia da fealdade, exposta dolorosamente às nossas sensibilidades e memórias. Recito, então, a primeira poesia, de autoria de Amnon Shamosh



Anne Frank e eu
( Em três versões)

A
Nascemos
No mesmo ano
Ana Frank e eu.

Aprisionados juntos
Estivemos
Ana Frank e eu.

Ambos escrevemos um diário,
Ela da esquerda à direita
E eu ao revés.
O dela se conservou,
O meu –
Desapareceu.

Quem dos dois é real?

B

Nascemos
No mesmo ano
Ana Frank e eu.

O descobri-lo me doeu
Na casa sobre o canal
E minha filha comigo
De sua idade.

Tremia
(minha mão a agarrou)

Aprisionados juntos
Estivemos
Ana Frank e eu
Tremendo com um medo judeu.

Ambos escrevemos um Diário,
Ela da esquerda à direita
E eu ao revés.
O dela se conservou
E seu eco envolve o mundo.
O meu –
Desapareceu.

Quem dos dois é real?

Que gosto teria a vida
Se não poderei na minha
Fazer algo de algo
Do que ela fez
Em sua agonia? (...) ” ( p.233-235).




E, nós, que poderemos fazer de algo em nossas vidas, com aqueles que viveram as suas, em agonia?

Uma vez que a realidade mortal que deu vida à expressão - “depois de Auschwitz”- impôs a agônica possibilidade da permanência histórica do fascismo, indagou-se de então, desesperadamente, como seria possível crer em um Deus Bom, “depois de Auschwtiz”.

É legítimo também afirmar que “depois de Auschwitz”, o Belo não é mais. Pelo menos, o Belo clássico, erotizante e simétrico, já foi arruinado, como o foram as musas, os arquétipos, os banquetes filosóficos, as excelências da cidadania livre, os gozos do ócio.

A “formosura” revela-se, doutra forma, desabonitada, repugnante aos possuidores e às suas estéticas elegantes, perfumadas e cruéis.

Com João Cabral de Melo Neto: “Atenção peço, senhores, (...) vou contemplar a figura. Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga: (...) - De sua formosura já venho dizer: é um menino magro, de muito peso não é, mas tem o peso de homem, da obra do ventre de mulher. – De sua formosura deixai-me que diga: é uma criança pálida, é uma criança franzina, mas tem a marca de homem, marca de humana oficina. (...) Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo (...) mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha. (...) Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia. Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia.” (118-120)

A tragicidade da existência agônica, que em não sendo a nossa individualmente, é muito mais nossa, porque dela por alguma razão, sorte, contingência ou fado, fomos, por enquanto, somente por enquanto, poupados.

Mais nos impõe recolher o sublime do trágico, por uma única razão, a de sermos todos do mesmo barro: paradisíaco e infernal, fratura imposta e exposta, por sermos gentes humanas: solidárias e covardes, ousadas e temerosas, humildes e vaidosas.

Assim somos, mas não o somos simetricamente. Ainda bem que não!

Desejar o desequilíbrio das iguais possibilidades é o “poder acordar para fora”, tal o acordar em Auto de Frade, de J. C. de Melo Neto: “Acordo fora de mim, como há tempos não fazia. Acordo claro, de todo, acordo com toda a vida, com todos cinco sentidos e sobretudo com a vista que dentro dessa prisão para mim não existia. (...) Acordar não é de dentro, acordar é ter saída. Acordar é reacorda-se ao que em nosso redor gira.(...)” (219)

Agora o acordar, sobretudo, com a vista, já não possui apenas a visão do inferno hodierno. Acordar ao que em nosso redor gira, é não deixar todas as esperanças, os que aí somos todos entrados e entranhados.

Contrariando Dante, lasciate ogne speranza, voi ch”intrate , pois é mesmo daqui, da porta infernal do Outro, em tom sartreano, que se apuram e depuram os gestos humanos da ação esperanceira.

“Como conciliar estas coisas? - indaga Pablo Neruda, em Confesso que vivi. (...) Cada vez sou menos sociólogo. Fora dos princípios gerais do marxismo, fora da minha antipatia pelo capitalismo e minha confiança no socialismo, cada vez entendo menos da tenaz contradição da humanidade. Nós, os poetas desta época, sempre temos que optar. (...) Encontrei em meu partido, o partido comunista do Chile, um grupo grande de gente simples, que tinha deixado muito para trás a vaidade pessoal, o caudilhismo, os interesses materiais. Senti-me feliz de conhecer gente honrada que lutava pela honradez comum. (...) Que mais posso dizer?...(...) Da humildade nunca se aprende o bastante. O orgulho individualista que se encastela no ceticismo para não ser solidário do sofrimento humano nunca me ensinou nada”. (318)

Esperança, fé e caridade, as virtudes aparecidas na Primeira Epístola de Paulo, aos Coríntios, conjugam-se ao título da obra de Dom Pedro Casaldáliga, Creio na Justiça e na Esperança, à ocasião, bispo de São Felix do Araguaia: “Quinze dias de quaresma real. Entre a ira e a oração. Na paixão do povo. Tenho aprendido muitas coisas de política e igreja. O regime do Brasil é um esquema nazista de terror. Os poderes econômicos impõem a lei e amordaçam a justiça”(...) Me chamarão subversivo e eu lhes direi: o sou. Por meu povo em luta, vivo. Com meu povo em marcha, vou. Tenho fé de guerrilheiro e amor de revolução. E entre evangelho e canção, sofro e digo quanto quero. (...)” (55)

A mesma esperança e o mesmo amor- na luta pelo nosso povo, por nós, não esqueçamos, Frei Betto, em seu Batismo de Sangue, quando submetido à interrogatório, cercado de dezenas de policiais, se havia conhecido pessoalmente Marighela, respondeu que sim. Ao que o delegado insiste: “Mas você sabia que ele era comunista, não é mesmo?(...) E como pode um cristão colaborar com um comunista?...”
Eis, de Frei Betto, não qualquer resposta, mas a resposta, também a de Frei Betto: “Para mim, os homens não se dividem entre crentes e ateus, mas sim entre opressores e oprimidos, entre quem quer conservar a sociedade injusta e quem quer lutar pela justiça.” (123)

Por fim, anuncio a Beleza do Sentido: ao mostrar a face do trágico, mediante uns parcos depoimentos dos que a ela sobreviveram, que não nos esqueçamos- jamais!...jamais!... dos milhões que agonizaram e agonizam em suas existências, fazendo das suas únicas vidas preciosos escudos das nossas, tão indiferentemente vividas.

Bela é a decisão de colher do feio- do sangue, das cinzas, das ossadas, o sentido de manter vivo o Sentido, pois somente assim, a vida poderia voltar para nós o seu rosto sublime.

Eis a beleza e eis o sentido – viver a plenitude do humano! Será essa a nossa herança, vivificada nas nossas ações e palavras, “Aos que vão nascer”. Recito, então Brecht , (...)

Bibliografia
BETTO, frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
BRECHT,B. Poemas 1913-1956. São Paulo:Ed. 34, 2000.
CASALDÁLIGA, P. Creio na Justiça e na Esperança. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira s.a., 1979.
DANTE, A . A Divina Comédia:Inferno. São Paulo: Ed. 34, 1998.
GULLAR, F. Toda Poesia (1950-1980). São Paulo: Círculo do Livro s. a., s/d.
MARX,K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1975.
MELO NETO, J. C. de. Os melhores poemas. São Paulo: Globa, 1975.
SCHOPENHAUER, A. Dores do Mundo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. s/d.
SHAMOSH, A . (in) Poesia Hebrea Moderna. Jerusalém, La Semana Publicaciones Ltda, 1987.


Palestra “O sentido da Beleza- Psicanálise, Filosofia e Cirurgia Plástica, em mesa, do Projeto Contraponto: encontros entre a Clínica Médica e a Clínica Psicanalítica, Grupo de Estudos SÓ FREUD. Maio/2006. Com a cordial participação de Aura Celeste, voz e violão, em “Mamão com Mel”, de Gonzaguinha.

4 comentários:

  1. Excelente!
    Talvez tu não acredites, mas antes de ler, apesar de não ter comentado contigo, eu tinha pensado na resposta daquele problema... É o Belo! A leitura me confirmou isso.

    Um abraço apertado,
    Até quarta.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Devo reafirmar as palavras do Álvaro...
    Apesar de concordar com a poetisa Safo
    quando diz que "o que é belo é belo aos
    olhos - e basta! Mas o que é bom é subitamente belo!", a resposta ao que primeiramente apreende o sentido do homem, é o belo.

    Flaviene.

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